Mais do que uma crise sanitária, atravessamos uma época de intensa transformação social, de revisão de comportamentos, estilos de vida, comunicação, perfis profissionais, de reconfiguração da nossa perceção do mundo. Vivemos um dia de cada vez, interrogamo-nos sobre o futuro próximo e desconfinamos enquanto podemos. Por entre o processo de adequação ao que é referido como “nova normalidade” e ao navegarmos pelas ondas de impacto desta inopinada peste, releva-se uma virose socialmente menos escrutinada, mas que deve merecer a nossa atenção. Esta virose afirma-se numa obsessão discursiva, informativa, especulativa sobre o fenómeno pandémico, reiterada e reformulada ao seu limite, numa era mashup, em formatos informativos audiovisuais, sonoros e/ou imagéticos, que vão muito para além dos históricos serviços noticiosos televisivos e radiofónicos (que raramente se iniciam com narrativas referentes a outros assuntos para além dos que à Covid 19 se referem) e se multiplicam nos meios digitais on e off line, entre o YouTube e o Facebook, passando pelo Instagram, o Twitter e tantas outras plataformas e redes sociais, nas quais a produção de conteúdos conhece um crescimento exponencial nos últimos anos. Assim, os espaços nos quais se procura e lê informação dificilmente podiam ser mais diversificados do que neste momento de plena expressão participativa individual ou colaborativa, estando as peças do repórter profissional a par das do do adolescente que escreve ou produz audiovisuais no seu telemóvel na pausa das piruetas com o skate. Ora, estas peças originam muitas outras (graças à diversidade de software disponível), a informação é relida, transformada em processos copy-paste, parodiada, insere-se música, insere-se uma personagem, altera-se um rosto, incluem-se palavras, como se de plasticina se tratasse, dando origem aos mais delirantes produtos acessíveis em todo o mundo ligado pela internet. Fake news, mashups, e tantas outras possibilidades cujas designações pertencem ao grupo exclusivo dos que possuem literacia dos media. O ruído de fundo de discursos sobre a pandemia é contínuo, por vezes ensurdecedor, enxotando sem dó quaisquer outras narrativas.
Bernard-Henri Lévy, na sua recém-lançada publicação Este vírus que nos enlouquece, fala de um estado de “loucura”, observando que o que o mais o impressiona na pandemia é a forma “estranha” como a ela estamos a reagir (2020). Michel Wiewiorska (23/04/2020) refere a expansão de dimensões irracionais nestes tempos instáveis. O vírus enlouquece-nos porque exige a nossa atenção de modo permanente, vírus-rei. Lévy discute o modo como o planeta se une (e se separa) em manifestações de solidariedade, mas sobretudo de medo, de esvaziamento, confinamento e solidão e assinala a viralidade mundial do discurso sobre o covid. Já não estamos tranquilos se não navegarmos diariamente sobre várias interpretações do fenómeno, das estatísticas diárias, das conferências de imprensa, às histórias de sobreviventes. Fiquei a pensar na dimensão “mágica e punitiva” deste processo, pois que a intensa repetição e sobrecarga (des)informativa conduz tão frequentemente o indivíduo a procurar respostas simplistas ou autocráticas. A música e a produção sonora em geral têm vindo a acompanhar, intercalar-se e enfatizar os discursos (mais, ou menos, legitimados e esclarecedores) sobre o vírus, nomeadamente em audiovisuais difundidos no YouTube, TikTok e tantas outras plataformas. No meio deste caldeirão de possibilidades, optei por abordar aqui um registo específico. Podemos talvez designá-lo de modo terapêutico, de auto-ajuda, quiçá esotérico, sendo que nenhuma destas expressões define adequadamente os audiovisuais visados.
Oito minutos depois de ter iniciado a audição do “mantra sonoro” disponibilizado pelo canal YouTube Good Vibes-Binaural Beats, as dores de cabeça tinham-se intensificado… Certamente não o estaria a escutar com a disposição adequada ou talvez tenha sido porque não adquiri os altifalantes recomendados na referida página, nem sequer a T-Shirt Good Vibes. E, no entanto, o texto disponibilizado pelos autores deste vídeo garante que a frequência de 741 hz permite, “limpar” infeções, vírus, baterias, fungos, bem como “dissolver” toxinas e radiações eletromagnéticas. A ligeira náusea que já sentia aos dezassete minutos em nada era concordante, no entanto, com a excelente receção desta produção audiovisual que conta com mais de 9 milhões de visualizações e, desde a sua publicação, em outubro de 2018, 8800 comentários. Nestes, para além da descrição de vários estados de ansiedade e outros sintomas e patologias mais graves de que padecem os utilizadores deste vídeo e do modo como as tentam curar, encontram-se muitas expressões positivas e de sensação de pertença a um grupo. “Group hug everyone? We’re all one” propõe uma das intervenientes, obtendo 286 likes e muitas réplicas calorosas à sua intervenção. Outros enviam (ou pedem) amor, paz, pensamentos positivos, orações, expressando a sua sensação de pertença à comunidade que escuta estas “boas vibrações”.
A frequência 741 hz é, pelo que consegui aferir, bastante utilizada em várias “curas”, sendo reconhecida, pelos praticantes das mesmas, como benéfica para a limpeza das infeções, resolução de problemas, despertar da intuição, entre outras propriedades. Trata-se de uma das seis frequências que o naturopata Joseph Puleo associa ao que designou de Solfeggio, baseando a sua “teoria” no sistema de solmização de Guido d’Arezzo. Cruzando elementos de numerologia com a sua interpretação pessoal dos evangelhos e das proporções Pitagóricas, bem como um suposto trabalho sobre o impacto do som na mente e corpo humanos, o autor propõe em final da década de 1970 uma associação entre determinadas vibrações e efeitos específicos sobre disposição e comportamentos. Quando este fértil e imaginativo objeto se cruza com o YouTube e os muito investidos internautas sorvem o tema manifestando as suas réplicas pessoais em incontáveis espaços digitais, a situação exponencia-se como uma tempestade tropical. São centenas ou talvez milhares - não procurei aferi-lo - de páginas, vídeos, produções sonoras, que partem de uma vaga ideia de terapia politeísta ou metafísica a partir do som, mais concretamente do dito Solfeggio, confirmando-se que a criatividade é uma das mais notáveis e prolíficas características humanas. Nestas páginas, raramente se referem aspetos relacionados com o timbre, os instrumentos que devem produzir as referidas frequências, a afinação ou até as condições de audição, sendo a concentração dirigida fundamentalmente às frequências selecionadas. Por entre os comentários dos frequentadores destes sites, encontram-se os que se dizem apreciadores de todas as seis frequências, outros que preferem algumas delas, sendo o Mi muito requisitado: “A frequência Mi é a mais linda”, lê-se num dos sites sobre as “6 poderosas frequências do Solfeggio” enquanto outra utilizadora observa: “Tenho ouvido o som Mi, sinto-me mais centrada e com melhor disposição para realizar as tarefas necessárias.”
Despendi algum tempo a tentar perceber a razão de se fazer referência a uma frequência de 741 Hz no vídeo em epígrafe, quando o que se escuta é uma progressão de acordes tonais. Demorei mais um pouco a tentar compreender porque se refere em todos os sites onde se menciona este Solfeggio que a frequência corresponde à nota sol quando, na afinação temperada, ela corresponde a fá#. Desisti, naturalmente, porque a explicação encontra-se para lá da minha formatação profundamente académica. Basicamente, começamos por ouvir um acorde de fá M com fá# sobreposto, realizados num sintetizador, sucedendo-se um encadeamento de acordes sem centro tonal. Deixarei a questão binaural para uma próxima crónica visto carecer de um espaço próprio.
“This one specifically has healed me several times...” assevera um utilizador que afirma ter sido curado de uma picada de aranha e uma queimadura do 3º grau, em três dias, “You saved my life... not to mention my arm and hand...”, enquanto outro refere ter sido curado de uma severa sinusite que o impedia de dormir: “came here, played it and is gone”. Outros intervenientes referem ter tido resultados poucos segundos depois de terem iniciado a audição: “considero que está frecuencia es muy buena. A mí me soluciona problemas de infecciones y muy rápido.” ou ainda “This helps me feel rejuvenated”.
Há cerca de seis meses, os comentários sobre a covid 19 começaram a surgir por entre as várias preocupações manifestadas pelos participantes na conversa associada ao vídeo Good Vibes-Binaural Beats. Inicialmente, os participantes referem-se a uma ameaça longínqua lendo-se até sugestões sobre o interesse que podia ter a divulgação deste mantra pelo governo chinês, para ajudar a cura do novo vírus. Mais recentemente, encontra-se o recurso a Good Vibes por utilizadores que declaram eles mesmos sofrer de covid 19, procurando ajuda através desta audição. Outros, mencionam que o ouvem por prevenção ou que o colocam no trabalho para evitar a infeção nesse espaço. Orações, desejos, palavras de solidariedade, reflexões sobre o isolamento multiplicam-se. Há uma semana, uma ouvinte escreve: “Currently battling Covid. I will listen to this as I sleep another day away ....”. Reiki, deus, yoga, Jesus, a bíblia, anjos, espíritos, Bhagwan, mencionam-se ao longo dos comentários, relevando necessidades, ou apelos metafísicos, que excede credos organizados reunindo diferentes visões do mundo sobre os poderes de uma alegada frequência terapêutica: “I am trying this frequency to heal me from Coronavirus as I have recently caught it. – refere um dos utilizadores - I hope it will reach everyone infected with this viral disease.”
A participação e cooperação transterritorial entre indivíduos de zonas nas quais a internet se encontra acessível, pela adesão ou produção de comunidades online, em torno de teorias mashup alimentadas pelos próprios utilizadores e rentáveis para determinados produtores de conteúdos, apresenta-nos um cenário que há pouco tempo nos era desconhecido e reforça a importância de nos debruçarmos sobre as profundas transformações em curso, desenhando o sentido das estruturas futuras.
Paula Gomes-Ribeiro
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Good Vibes – Binaural Beats. “741 hz- cleanse infections, virus, bacteria, fungal- dissolve toxins & electromagnetic radations”. https://www.youtube.com/watch?v=j9Mzyf_B8rQ
Lévy, Bernard-Henri. 2020. Este vírus que nos enlouquece. Lisboa: Guerra & Paz.
Wiewiorka, Michel. 23/04/2020. “Coronavirus. Comment le sociologue Michel Wieviorka envisage l’après-crise”. Paris-Normandie.