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O REGRESSO



A questão de como as artes performativas, em especial as musico-teatrais, se

irão voltar a apresentar e reconstruir, após os vários períodos de confinamento,

é fascinante e profunda.


Durante este ultimo ano e meio, eu, como muitos outros artistas, viram a sua

produção reduzida de forma dramática e nunca antes experienciada. No meu

caso, optei essencialmente por aproveitar este como um período de reflexão.

Criei, com a AREPO - Ópera e Artes Contemporâneas, um ciclo de entrevistas

intitulado “Convida 20” onde várias personalidades das artes, literatura, filosofia

e musicologia se debruçaram sobre a questão do impacto da pandemia nas

artes e suas futuras repercussões. Irei aqui partilhar algumas das ideias

principais dos entrevistados que se referiram especificamente a esta questão,

bem como uma reflexão sobre as mesmas.


A resposta artística dada às excecionais circunstâncias vividas foram não

apenas institucionais mas também individuais. Durante o primeiro

confinamento, em março de 2020, houve um aumento profícuo de

performances online a todas as escalas. De músicos individuais, a partir de

suas casas, até a grandes instituições internacionais. O crítico musical do Daily

Telegraph, Ivan Hewitt, falou-nos de dois exemplos paradigmáticos: o pianista

alemão, de origem russa, Igor Levit e a Orquestra Filarmónica de Berlim. Levit,

durante os primeiros meses do confinamento, apresentou-se todos dias às 19

horas, (hora alemã) e por vezes em difíceis circunstâncias, num total de 52

concertos. Rapidamente os seus “house concerts” ganharam notoriedade nas

redes sociais e um deles chegou até a ser introduzido, verbalmente, pelo

Presidente da Republica Federal Alemã, Frank-Walter Steinmeier. Apesar do

sucesso das suas apresentações, o início, confessa Levit nesta entrevista ao

The Guardian, foi um salto sem rede: “I had no microphone, no proper

equipment, no idea whether you could even livestream a long piece of music on

Twitter”.


Efetivamente, qualquer youtuber adolescente estava mais bem preparado do

que a maioria dos músicos eruditos para os desafios das transmissões online,

tanto do ponto de vista técnico, como do ponto de vista comunicacional.

Estas experiências foram particularmente importantes para os artistas e não

apenas para o público. A falta de comunicação entre ambos pode ser

desesperante como nos confessa Levit na mesma entrevista: “…the

guaranteed way to put artists in despair and depression is non-communication.

Politicians give press conferences and talk about everything and everyone but

not us. This is very painful.” Apesar de todas as dificuldades, estas primeiras

respostas ao cancelamento de espetáculos ao vivo contaram com a boa

vontade do público que, inicialmente, as receberam positivamente.

Relativamente às grandes instituições, Ivan Hewitt deu-nos o exemplo da

Filarmónica de Berlim. Muitas organizações cancelaram simplesmente os

espetáculos agendados mas a Filarmónica de Berlim não, optando por

transmissões live streaming. O programa de 11 de março de 2020, dirigido por

Simon Rattle, que tinha sido pensado para uma normal execução ao vivo, não

sofreu qualquer alteração: Sinfonia de Luciano Berio e o Concerto para

Orquestra de Béla Bartok. A estranheza de vermos uma plateia vazia foi muito

bem retratada pelo crítico musical do “New York Times”, Anthony Tommasini,

nesta crítica publicada no mesmo jornal, na qual afirmou: “It was one of the

most disorienting yet profound views of a performance I’ve ever had”.

Tommasini faz igualmente algumas observações pertinentes em relação às

várias transmissões online a que assistiu, mencionando que as transmissões

de concertos ou óperas não são uma novidade há bastante tempo. Já desde os

anos 30 do século XX que a “Metropolitan Opera” realizava transmissões dos

seus espetáculos via rádio. Estas transmissões, inicialmente exclusivamente

sonoras, foram-se sofisticando ao longo dos tempos podendo hoje em dia

serem visionadas online. A diferença, em relação à atual situação pandémica, é

que um dos objetivos destas transmissões era o de dar ao ouvinte/espetador a

sensação de fazerem parte do público que assistia “verdadeiramente” ao

espetáculo. O que aconteceu com estas transmissões, onde a orquestra atuava

para uma sala vazia, é que o público online não estava sequer a tentar ter

qualquer espécie de experiencia imersiva no seu visionamento. Eles eram o

público, o único público.


Todos nós, que assistimos e experienciamos concertos online, estávamos

cientes que estes eram tempos únicos e, como tal, sentimo-nos gratos pelo

“penso rápido” que estas instituições e artistas nos proporcionaram. No

entanto, após o impacto inicial, começou-se a gerar um certo cansaço e

desinteresse por estas transmissões e pelo pouco que elas acrescentavam às

anteriores formas de transmissão pré-pandémica. Alguns criticaram o facto de

a grande maioria destas transmissões ser gratuitas. Isso iria encorajar as

pessoas a pensar que a música é naturalmente gratuita e que deveria continuar

a sê-lo depois. Outros, como o recentemente falecido encenador Sir Graham

Vick, nesta entrevista da série “Convida 20”, considerava que ninguém podia

fingir que todo o streaming que estava a acontecer era verdadeiramente

interessante. Falando especificamente de ópera, Graham Vick afirmou que,

quando cria um espetáculo de ópera, tenta dar muito mais do que aquilo que

recebe de um ecrã e que certamente esse não é o futuro da ópera. Diversos

elementos digitais tornar-se-ão, inevitavelmente, parte desse futuro, mas não

irão simplesmente transferir-se para o ecrã, tal como o teatro não se transferiu

para o cinema.


De facto, até começarmos a ter verdadeiras e interessantes repercussões

artísticas dos constrangimentos pandémicos foi necessário esperarmos um

pouco mais. Disso mesmo nos deu conta um outro convidado do ciclo “Convida

20”, o musicólogo e filosofo João Pedro Cachopo que nos deu alguns exemplos

de espetáculos que souberam responder de forma criativa às atuais

circunstâncias. Destaco a produção operática de Crepúsculo dos Deuses, de

Richard Wagner, produzida pelo “Michigan Opera Theatre”, com conceção e

encenação de Yuval Sharon. A estreia ocorreu a 17 de outubro de 2020, pouco

tempo depois de Sharon ter-se tornado diretor artístico do “Michigan Opera

Theatre”. Inspirado pelos cinemas drive-in, onde se assiste ao filme dentro do

carro, com o áudio do filme geralmente transmitido através de uma frequência

de rádio FM, Yuval Sharon, fundador da companhia experimental operática

“The Industry”, mostrou-nos uma vez mais porque é considerado um dos mais

inovadores encenadores de ópera da atualidade. Esta versão de Crepúsculo

dos Deuses pode ser já considerada como arte-pandémica pois nasceu das

necessidades e restrições impostas pela pandemia. A apresentação teve lugar

no parque de estacionamento subterrâneo mais próximo do teatro, que é

composto por seis níveis. Em conjunto com o compositor e orquestrador Ed

Windels, Sharon criou uma versão reduzida, de aproximadamente 70 minutos,

da ópera de Wagner. Os seis níveis do parque de estacionamento estruturam o

número de cenas (igualmente seis, mais um prólogo) e à medida que íamos

subindo de nível também o número de forças musicais ia aumentado. O

público, dentro dos seus carros, iam entrando um a um, sendo que apenas era

permitido um carro por cena. Quando o primeiro carro terminava de assistir à

cena 1, este subia para assistir à cena 2 e um novo carro entrava para ver a

cena 1. O processo repetia-se até ao nível 6. A cada novo nível a frequência do

autorrádio tinha de ser ajustada de forma a não se sobrepor com as restantes

cenas que decorriam noutros níveis em simultâneo. Com este conceito, Sharon

resolveu, em boa parte, um problema que existiu com a produção, pela The

Industry, da ópera de Christopher Cerrone, Invisible Cities. Gosto de chamar a

esse problema “a cegueira do ouvido”. Nesta produção sítio - específica, que

teve lugar em 2011 na Union Station em Los Angeles, o público vagueava pela

estação tendo como única fonte sonora auscultadores sem fios, fornecidos pela

produção, através dos quais eram transmitidas as vozes dos cantores e a

música do ensemble. Ao iniciarem o seu percurso pela estação, onde a ópera

se desenrolava, o público tinha sempre uns primeiros 10-15 minutos um pouco

confusos. Apesar de escutarem através dos auscultadores as vozes dos

cantores (o ensemble, já sabiam de antemão que estava fixo numa sala da

estação), tinham sempre dificuldade em localizá-los visualmente por entre os

utentes diários da estação. O ouvido estava “cego”. Os auscultadores retiravam

uma das valências mais importantes da audição – a perceção de

direccionalidade. Ao colocar o público dentro de suas viaturas, a ouvir a ópera

através dos seus rádios, em frente aos cantores e restantes interpretes, o

problema da direccionalidade da escuta foi essencialmente resolvido. Além

disso, muito do público de Crepúsculo dos Deuses, não resistia ocasionalmente

em baixar um pouco o vidro do seu carro de forma a ouvir o som real dos

intérpretes.


Estas iniciativas, aqui brevemente descritas, irão muito provavelmente

contribuir para a renovação e diversificação dos modos de apresentação e

produção de espetáculos musicais. Quando emergirmos definitivamente para a

normalidade, penso que alguns traços da experiência do confinamento irão

certamente manter-se e nada será como dantes. Mas apesar de bem-

intencionadas e algumas até bastante imaginativas, estas iniciativas têm um

calcanhar de Aquiles que só um regresso aos espetáculos presenciais poderá

trazer – a comunhão. Ao assistirmos presencialmente a um concerto ou uma

ópera, cada um de nós experiencia-a/o de uma forma diferente. Aquilo que nós

somos e levamos para uma plateia é quase como se fosse metade do

espetáculo. Como disse Graham Vick, “…a verdade que paira no ar [no espaço

físico do espetáculo], é comunal mas a ideia que toda a gente tem dessa

mesma verdade, é própria”.


Luís Soldado

Investigador do CESEM

Bolseiro FCT

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