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“O Nascimento de Vénus”: Glass Marcano e a Orquestra Gulbenkian


Pormenor de O Nascimento de Vénus de Sandro Botticelli (1445 - 1510)



São quase 20:00h do dia 2 de dezembro e o grande auditório da sede da Fundação Calouste Gulbenkian encontra-se a meia lotação, metade cheio ou metade vazio, como preferirem. Os ecrãs led passam o nome de Giancarlo Guerrero (n. 1969), Glass Marcano (n. 1997), Ottorino Respighi (1879 — 1936), Richard Strauss (1864 ­— 1949) e o nome das obras que ouviremos, Trittico Botticelliano (1927) e uma Suite Sinfónica de Ariadne auf Naxos (1912), num arranjo de D. Wilson Ochoa (2010). Ao meu lado Alejandro, um amigo da Venezuela, e, na mesma fila, mas um pouco mais à direita o director artístico do departamento de música da fundação Risto Nieman. Os três, juntamente com o resto do auditório, aplaudimos a entrada dos maestros, do maestro e da maestra (ou maestrina). Guerrero entra com um microfone e cumprimenta-nos ­— faz falta mais comunicação no mundo da música clássica, entrar e dirigir um concerto sem dizer boa noite pode ter sido, em tempos idos, apanágio, mas começa a parecer falta de educação. Diz-nos Guerrero que uma das dificuldades de se ser maestro é ter acesso a uma orquestra com quem se possa treinar, se os músicos podem passar horas com o seu instrumento o mesmo não acontece com os jovens estudantes de direcção orquestral, muito menos horas com uma orquestra profissional com o nível da Orquestra Gulbenkian. É por isso um momento especial na carreira da jovem Glass Marcano dirigir tal orquestra, oportunidade que ela nunca esquecerá, garante o maestro. São meia dúzia de frases que criam um ambiente familiar e nos implicam no que se passará a seguir — também nós ficaremos para sempre na memória de Glass?

A vida está cheia destes momentos julgados inesquecíveis mas só o tempo dirá o que se esquece, o que se recorda e o que se pensa recordar. E o tempo como se sabe é matéria prima da música, além de fundamental a tudo o resto. É também esta uma das coisas que mais gosto na música, a sua capacidade de convocar tempos e de cruzar narrativas sem delas se tornar refém, se não repare-se: estamos nós no século XXI, prestes a ouvir música escrita no início do século XX, que por sua vez faz referência a três pinturas que Respighi viu um dia numa galeria em Florença pintadas há mais de 500 anos e que terão sido inspiradas pela mitologia romana. Toda essa quantidade de história e de histórias convergem naquele momento. No palco a orquestra atenta nas mãos de uma millennial, cuja história parece saída de um filme de Hollywood, e subitamente todas essas histórias de que falava são ao mesmo tempo essenciais e acessórias.

Glass Marcano saí do palco para trocar de partitura e depois regressa para dele se apoderar dirigindo a orquestra com solidez e assertiva criatividade. A sua segurança e musicalidade rapidamente nos fazem esquecer de que está ainda em formação ou, dito de outro modo, rapidamente nos fazem perceber porque é uma estrela em ascensão. Também a orquestra se parece aperceber disso, respondendo aos apelos da jovem na obra delicada de Respighi, que terá no terceiro movimento, “O Nascimento de Vénus”, a demonstração evidente da sintonia entre Glass, a orquestra e o público. Depois de “A adoração dos Magos” — com destaque para o desempenho do fagotista e da flautista —, Glass segue sem batuta para o derradeiro movimento e que parece idealizado para a sala do grande auditório. Com o lago como pano de fundo e o jardim iluminado, o palco é ele próprio uma versão da pintura de Botticelli. O público está com Glass de tal modo que quando a maestrina dirige a orquestra em direção ao clímax da obra culminando numa suspensão geral o público imediatamente aplaude. Glass segura a orquestra e avança para os compassos finais antes do merecido aplauso. Tal como Vénus que nasce já mulher adulta também Glass Marcano se estreia como se nunca tivesse feito outra coisa, como se toda a sua vida fosse muita — e não será? — e se passasse sempre de fronte a uma orquestra.

Giancarlo Guerrero entra depois, já um habitué do palco da FCG e do seu público dirige com a energia e vivacidade que lhe é característica uma obra que peca talvez pela ausência de pausas entre os vários andamentos, mas vale pela curiosidade que desperta em acompanhar o drama de onde foi retirada, a ópera de Richard Strauss, curiosamente sobre os sonhos de um compositor em triunfar com a sua obra e os constrangimentos a que estará sujeito para o conseguir.


Ricardo da Rocha Pereira


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