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A Viagem de Inverno e a COVID-19.

Atualizado: 25 de ago. de 2020


Foto: Henrique Vilão


É sabido que muitas interpretações revelam mais sobre o interprete e o seu contexto do que a obra em si. A arte actua, nestes casos, como um espelho no qual reconhecemos o mundo que nos rodeia e habita. Não é por isso de estranhar que diferentes experiências ofereçam olhares distintos sobre um mesmo objecto. É talvez essa a virtude das grandes obras, a capacidade de suscitar e resistir a várias leituras ao longo do tempo.

Quando a 19 de Março, pela primeira vez na democracia portuguesa, se declarou estado de emergência haveríamos de colectivamente entrar numa experiência também ela pela primeira vez mundial: o confinamento. Por essa altura, a terminar a licenciatura em ciências musicais e inscrito em Análise e Teoria Musical de 1815-1890, andava particularmente ocupado com o Lied de Schubert «Die Wetterfahne [O Cata-vento]», o segundo Lied do ciclo A viagem de Inverno. Este segundo ciclo de 24 canções que F. Schubert compõe a partir de poemas do Wilhelm Müller em 1827, retrata diferentes dimensões e vários estados de um viajante solitário e da sua viagem. Esta viagem é, como o nome indica, feita no inverno — a estação fria e negra que muito fala ao espírito romântico —, motivada por um desgosto amoroso e que leva o sujeito poético a abandonar a casa da sua amada, depois de uma temporada luminosa e primaveril. É pelo menos o que nos diz a figura do viajante na primeira canção enquanto se despede com o célebre «Gute Nacht».

O exercício de uma análise formal do Lied deu lugar a um exercício de reflexão sobre a obra no contexto actual: o que há na Viagem de Inverno de Schubert, particularmente em «O Cata-vento», que possa ser de interesse em tempos de pandemia?

A ideia de viajar reveste-se por estes dias de novos sentidos. Repensa-se pela primeira vez na era da globalização e do turismo de massas a viagem enquanto conquista democrática, seja porque temos medo de viajar, porque as viagens estão em grande medida condicionadas ou simplesmente porque fomos obrigados a olhar conscientemente para o seu significado ambiental e sanitário. Haverá com certeza aqueles que se regozijam com o cancelamento de viagens que não queriam fazer, outros que choram as desejadas viagens de verão e pensam já em possíveis opções de inverno. O futuro é indefinido, certezas só de grandes dificuldades que se acercam e de uma sensação de lenta e profunda transformação. Estamos de certa forma como o viajante de Schubert: perante um caminho desconhecido e com a sensação de que alguma coisa de fundamental se alterou em nós — ainda que essa sensação se dilua no «novo normal» quotidiano de máscaras, álcool gel e «distanciamento social» — «Nun ist die Welt so trübe // Der Weg gehüllt in Schnee.» [agora o mundo está turvo // e o caminho cheio de neve].

A primeira coisa em que pensei, com alguma comicidade à mistura, foi a elaboração de um guia de viagem a partir do ciclo, com a sugestão directa de uma viagem solitária a um destino longe das cidades densamente habitadas, privilegiando o turismo rural ou mesmo o selvagem, numa das florestas encantadas do norte da europa. Ainda que engraçada, a ideia pareceu-me demasiado pueril. «Die Wetterfahne» oferecia uma possibilidade de leitura mais séria e pertinente, era só preciso olhar com mais atenção o comportamento do viajante.

O prelúdio instrumental introdutório em uníssono sugere movimento. A princípio poderíamos pensar que se trata da propulsão que faz o viajante iniciar viagem, obrigando-o a sair do melancólico ambiente de «Gute Nacht», mas não é o caso. O arabesco com que Schubert abre «Die Wetterfahne» tem como objectivo evocar o vento. O viajante não avança. Depois de se despedir e sair de casa da ex-noiva o viajante olha, do lado de fora, a casa que outrora lhe ofereceu conforto e no cimo dela o cata-vento. É neste gesto, por demais humano, que talvez valha a pena concentrarmo-nos.

O sujeito poético procura frustradamente uma orientação no cata-vento desnorteado, instrumento de orientação que serve de metáfora à condição do seu coração e ainda como símbolo de um ignorado mau presságio. O elemento perturbador é o vento, fundamental à compreensão do poema — o vento enquanto elemento natural e enquanto representação do amor. Este é um tópico comum a todo o ciclo, conceitos com duplo significado e ambivalente uso da natureza — como é o caso do título Viagem de Inverno. Embora Müller não faça uma associação directa entre vento e amor ela é evidente para o leitor/ouvinte: ambas as forças naturais são cruéis e poderosas, incontroláveis e imprevisíveis. Enquanto o vento brinca com objetos à sua mercê (cata-vento), o amor brinca com os corações. O viajante encontra, assim, na natureza uma imagem que exprime o seu estado emocional interior. O poema, constituído por três quadras de quatro versos, faz uso dessas associações a nível formal — na escolha, por exemplo, de palavras acentuadas na última sílaba no fim dos versos como «haus/aus» —, no entanto é na música que essa relação ganhará um significado verdadeiramente expressivo.

Schubert constrói toda a partitura — acompanhamento e melodia — a partir dessa ideia. É de todo o ciclo o Lied que mais utiliza o uníssono como recurso expressivo, criando um desenho melódico que não se limita a imitar o vento, torna-se ele mesmo o vento. Com a sua acção o viajante dá-se conta de que «[…] devia ter notado antes \\ A insígnia fixada nesta casa», evitando procurar em tal lugar «a imagem de uma fiel mulher». Mergulhado na sua individualidade — e de certo modo paranóia — o viajante sente que o vento troça da sua condição de «pobre fugitivo».

A ideia de que a natureza pode ter um comportamento moralizante — bem evidente no Lied de Schubert — não é original do séc. XIX, a pandemia de COVID-19 tem mostrado que ela está ainda vigente e ao serviço, entre outros, do discurso político e do activismo climático. Por outro lado, é igualmente verdade, que o ser humano parece ter ignorado a responsabilidade que tem para com as gerações futuros na preservação do planeta e dos seus recursos. O confronto com a natureza no seu estado selvagem, de que a COVID-19 é exemplo, — embora bastante previsível conforme se sabe hoje ­— parece ter-nos relembrado que somos mortais e que existe ainda na Terra uma grande dose de mistério e desconhecido. Sempre o soubemos. Tal como o cata-vento sempre esteve no cimo da casa.

Schubert termina o Lied de forma bastante dramática, colocando antes da barra final duas pausas de colcheia e sobre elas uma suspensão — gesto que não se voltará a repetir em todo o ciclo — sugerindo que embora o vento já não se faça ouvir lá fora, o coração do sujeito poético continua ainda atormentado e em sofrimento silencioso. Também aqui percebemos uma evidente e valiosa lição para os nossos atribulados dias. As consequências desta crise pandémica e da resposta a ela dada são ainda imprevisíveis, mas podemos adivinhar que terão — se é que não têm já — um efeito, em muitos casos, inaudível não só a nível individual, mas coletivamente e em vários sectores, especialmente os de grande precariedade, como é o da música em Portugal. Onde nos levará a nossa viagem de inverno?


Ricardo Pereira


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