Afinal, o que é uma canção?
Será que, na era Covid, as canções com textos filosóficos são mais inteligentes do que "as outras"?
Mais uma construção cénica que parte de uma ideia de "canção", desta feita trata-se de um espetáculo que pretende desafiar as “indústrias” e apelar a um nível mais profundo de pensamento.
Mas, afinal, o que é uma canção? É um poema? É um texto musicado? É uma voz ou vozes que cantam acompanhadas por instrumentos? Porque é tão frequente esquecer-se que uma canção é texto e música e interpretação? É o texto que faz a canção?Outra música com um mesmo texto, não é a mesma canção… Então onde entra o músico, compositor/a, produtores e intérpretes? Escute-se o texto Imagine, da canção de John Lennon, com a música de Venham mais cinco de Zeca Afonso… Porque se valoriza o texto e se esquece, tão frequentemente, que a música produz significado, que toda a dimensão sonora, acústica, de produção, de execução, de escuta, acrescenta e transforma conteúdos e leitura, e que a interligação entre todos estes elementos é bastante mais do que a sua soma?
O espetáculo de Massimo Furlan e Claire de Ribaupierre, FESTIVAL EUROVISÃO DA CANÇÃO FILOSÓFICA, pretende ser um protesto e simultaneamente um palco de reflexão, “concurso de canções pop com letras de pensadores, filósofos e investigadores de 11 países europeus”. Está em cena este fim de semana no Teatro Nacional D. Maria II seguindo posteriormente para o Rivoli, no Porto.
As canções do festival da Eurovisão são todas canções pop? porquê?
No texto constante na folha de sala, da autoria de Massimo Furlan e Claire de Ribaupierre, lê-se: “Com Eurovisão da Canção Filosófica, pretendemos responder indiretamente e com humor ao desprezo constante que o discurso populista demonstra face aos intelectuais, bem como ao desaparecimento do pensamento do espaço público em favor do entretenimento.”
Nestas canções convidaram-se intelectuais a escrever os textos. Pretende-se tratar grandes questões da humanidade.
“Atribuímos a tarefa de escrever estes textos a pensadores (filósofos, historiadores, antropólogos, etc.). No que diz respeito à forma, os textos seguem os códigos poéticos da canção, isto é, uma estrutura que inclui versos e um refrão, que pode rimar. No que diz respeito ao conteúdo, no entanto, não se trata de poesia, lirismo ou emoções, mas antes de considerar os aspectos sociológicos, antropológicos ou filosóficos do nosso mundo contemporâneo. Os autores partiram portanto de uma ideia e procuram dar-lhe a forma de uma canção.” O texto da canção portuguesa é da autoria de José Bragança de Miranda, Professor Universitário do domínio das Ciências da Comunicação (NOVA FCSH), e a sua audição encontra-se disponível aqui:
Um gesto que pretende provocar pensamento através da colisão de elementos pertencentes alegadamente a esferas distintas: o festival eurovisão da canção e o pensamento intelectual. Com efeito, não acaba este espetáculo por reificar todos os vetores que pretende pôr em confronto: o festival, a canção, o pensamento, simplificando-os e desprezando-os num pastiche pseudointelectual que se esquece, entre outros aspetos fundamentais, que uma canção é música, texto, desempenho musical, entre outras componentes ?
E qual é afinal a diferença entre o dito texto filosófico da canção, na qual aparentemente a música não tem qualquer relevância, e o dito texto “populista” das canções do festival da Eurovisão? Será porque os que escrevem os textos para as canções dos festivais não são intelectualmente distinguidos com a etiqueta de filósofos? Uma canção pop (seja lá o que isso for) não tem conteúdo crítico apreciável? Vou poupar o leitor à enumeração de exemplos de tal modo a lista é extensa.
Muitas questões mal resolvidas… quais são as diferenças entre popular e populista? Talvez valha a pena não deixar passar estas questões despercebidas, sem as tratar “filosoficamente”, num festival que quer desafiar populismos… (o que , à partida, podia pareceria muito bem).
Concluo com o texto, e o vídeo da canção composta e desempenhada por Fernando Tordo, com texto de Ary dos Santos, que representou Portugal no Festival Eurovisão da Canção de 1973, um ano antes da revolução dos cravos.
Não importa sol ou sombra
Camarotes ou barreiras
Toureamos ombro a ombro as feras
Ninguém nos leva ao engano
Toureamos mano a mano
Só nos podem causar dano esperas
Entram guizos, chocas e capotes
E mantilhas pretas
Entram espadas, chifres e derrotes
E alguns poetas
Entram bravos, cravos e dichotes
Porque tudo mais são tretas
Entram vacas depois dos forcados
Que não pegam nada
Soam bravos e olés dos nabos
Que não pagam nada
E só ficam os peões de brega
Cuja profissão não pega
Com bandarilhas de esperança
Afugentamos a fera
Estamos na praça da primavera
Nós vamos pegar o mundo
Pelos cornos da desgraça
E fazermos da tristeza graça
Entram velhas, doidas e turistas
Entram excursões
Entram benefícios e cronistas
Entram aldrabões
Entram marialvas e coristas
Entram galifões de crista
Entram cavaleiros à garupa
Do seu heroísmo
Entra aquela música maluca
Do passodoblismo
Entra a aficcionada e a caduca
Mais o snobismo e cismo
Entram empresários moralistas
Entram frustrações
Entram antiquários e fadistas
E contradições
E entra muito dólar, muita gente
Que dá lucro aos milhões
E diz o inteligente que acabaram as canções
Ary dos Santos
E diz o inteligente que acabaram as canções...
Paula Gomes Ribeiro
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Pode consultar-se a folha de sala do espetáculo visado em:
Com tanta filosofia e intelectualidade esqueceram-se de consultar os «intelectuais» das canções... gostei especialmente que os textos tratavam de «aspectos sociológicos, antropológicos ou filosóficos do nosso mundo contemporâneo» e que por esse motivo o conteudo «não trata de poesia, lirismo ou emoções» e eu que andei enganado este tempo todo a pensar que a ler os mais diversos poetas, a ir ao teatro, a ouvir música estava a aprender alguma coisa coisa sobre a humanidade, valha-nos este espetáculo e tanto filósofo/intelectual ...