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Guerra Fria (Zimna wojna) e o conflito da autenticidade musical


Guerra Fria (Zimna wojna) é até à data a longa-metragem mais recente de Pawel Pawlikowsky, que retrata a persistência de dois amantes incompatíveis, Zula e Wiktor. Baseada na vida dos pais do realizador, as personagens vivem em constante sequência de separação/ reconciliação durante 15 anos em vários cenários da “cortina de ferro”. A música é o ponto de reencontro constante, que espelha os vários momentos que se conformam ao espaço e ao tempo. Como refere Pawlikowsky, a música é como que uma personagem com o seu próprio papel dramático (1), que influi na acção, não só na representação da trama romântica, mas também como escultura de teor político e social. Enquanto as personagens vivem a sua discórdia, o plano musical vive o conflito da autenticidade, refletindo de forma orgânica a época e a geografia. Ao sabor das transformações sociais, impossibilita-se a inércia da expressão cultural, exigida pelo conceito de tradição.




Na Polónia do Pós-Guerra, o filme inicia-se com uma equipa de etnomusicólogos que recolhe melodias que representariam a identidade eslava. Além de material musical, esta equipa procurava também recrutar executantes da prática folclórica para o grupo Mazurek (baseado no factual Mazowsze ensemble). Zula entra em cena para este recrutamento e, ao perguntar se era necessário saber solfejo, é-lhe simplesmente respondido – “Eles querem à camponesa”. Em conformidade com os movimentos de revivalismo folclórico que se iniciaram na Europa na década de 1940, esta construção da identidade autêntica centra-se num purismo associado à vida provinciana, valorizada pela falta de contacto com o exterior, que viria a torna-se numa ferramenta das expressões nacionalistas.


Sendo Wiktor o maestro deste agrupamento, o seu primeiro encontro com Zula acontece no momento da sua audição, na qual é interpretada uma canção do filme soviético Veselye rebiata (1934), que transparece a influencia da propaganda cinematográfica. Zula é a representação da eficácia da cultura estalinista e do conformismo de quem a recolhe, e é nesta acção que reside a inocência da personagem neste momento da sua vida, mas também da própria música que se transformou de forma ingénua. A fatalidade deste encontro com a esfera política consuma-se quando o agrupamento Mazurek, contra a vontade dos etnomusicólogos, insere conteúdo estalinista no seu repertório. Ainda neste cenário, Wiktor toca Chopin, representando a sua solidão na expressão da sua identidade própria e na diferente relação desta com a sua nacionalidade. No primeiro encontro a sós com Zula, ambos improvisam sobre a melodia de I Loves You Porgy de Gershwin, o que permite a Wiktor partilhar com Zula a ligação que tem com o jazz, que irá explorar mais tarde em Paris, e que é antagónica às ideias musicais nacionalistas. Contudo, existirá sempre um fio condutor, na incógnita de que será à Polónia ou a Zula, e as improvisações em Paris transbordam de recordações das antigas melodias eslavas. A música diz-nos que Wiktor é demasiado cosmopolita em Varsóvia e idiossincraticamente polaco em Paris.


Mazurek torna-se assumidamente numa ferramenta propagandística, e entre as tournées e a fuga de Wiktor, a música irá adaptar-se aos vários encontros das duas personagens entre 1949 e 1964 na Alemanha, em França, na Jugoslávia e na Polónia. A melodia mais persistente ao longo do filme é Dwa serduska, que ouvimos a primeira vez na voz de uma jovem camponesa que canta para a recolha etnográfica que mais tarde é apropriada pelo agrupamento Mazurek. Como diria Hobsbawm, Mazurek representa uma "tradição inventada", que impõe uma repetição referente ao passado, e a canção Dwa serduska é uma emulação da constância de um costume que na verdade encontra-se totalmente modernizado (2). Esta “invenção”, apesar de passar por este processo de modernização, possui uma grande carga simbólica de “tradição” que se opõe às mudanças sociais de uma época em representação de uma cultura supostamente ancestral. Os nacionalismos servem-se deste processo de forma a criar uma continuidade histórica para fortalecer a sua própria linguagem simbólica com o argumento da longevidade.


Dwa serduska volta a aparecer em Paris e conforma-se às circunstâncias. Primeiro no piano de Wiktor, que improvisa esta melodia com o seu combo de jazz, e depois na voz de Zula, que interpreta uma versão blues desta canção. Neste momento do filme, a música deixa-se absorver pelo cosmopolitismo e pela partilha cultural – livremente com Wiktor e nostalgicamente com Zula. A música segue o seu processo de constante renovação e Dwa serduska é traduzida para francês e, por fim, gravada e vendida em disco, perdendo paulatinamente o que Walter Benjamin apelida de aura (3). O conflito da autenticidade evidencia-se à medida que a música se aproxima do espectador, primeiro através da língua e depois através do disco, uma transformação inevitável consequente das novas funcionalidades da música, num processo que não é negativo nem positivo: “é o que é” na relação com a modernidade. Os ares da mudança parecem agradar os amantes, e os momentos de reunião são ilustrados ao som do emergente Rock n´Roll, ao qual se entregam dançando. Numa das cenas mais destacadas pelos media para a promoção deste filme, Zula e Wiktor encontram-se ao balcão de um bar e os intervenientes desfrutam da mudança de ambiente musical assim que Rock Around the clock invade o espaço – nas palavras do próprio Pawlikowsky - “You can literally see civilization change. But before that, you see how boring and stuffy this salon life is, and then suddenly “Rock Around the Clock” is a liberation. The audience enjoys that bit of energy” (4). Contudo, nesta cena em específico, é iniciado um novo desencontro, demonstrando que o padrão de incompatibilidade romântica atravessa o paradigma da passagem do tempo.





Com o regresso de Zula para a Polónia, assistimos à tentativa de regresso da música à sua “origem”. A aura parece irrecuperável e Zula interpreta a canção Baio Bongo, de uma forma totalmente corrompida de apropriação cultural negligente, com músicos a exibirem algo semelhante a sombreros mexicanos, que não se relacionam com o carácter musical. Fica neste momento claro que nada voltará a ser o mesmo e que, na verdade, este regresso à autenticidade nunca foi possível. O filme termina, contudo, com um ambiente de reconciliação que prova o poder de transcendência da música. Depois de momentos sucessivos de tensão/distensão e desencontro/ reencontro o filme termina com uma promessa de devoção superior aos conflitos da incompatibilidade. Deixo à vossa consideração a escolha musical que ilustra este final - Aria das Variações Goldberg de J. S. Bach.


(1) Liebman, Lisa. “The Stories Behind the Songs in Cold War”. Vulture, December 21, 2018. https://www.vulture.com/2018/12/the-stories-behind-the-songs-in-cold-war.html.

(2) Hobsbawm, E. J., and T. O. Ranger. The Invention of Tradition. Cambridge England: Cambridge University Press, 2019.

(3) Benjamin, Walter. “A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica,” trad. João Barrento. In Walter Benjamin, A Modernidade, 207-241. Lisboa: Assírio e Alvim, 2017.

(4) “BLACK & WHITE MUSIC - An Interview with COLD WAR Director Pawel Pawlikowski.” Music Box Theatre, January 16, 2019. https://musicboxtheatre.com/events/black-white-music-an-interview-with-cold-war-director-pawel-pawlikowski.

Rayns, Tony. “Film of the Week: Cold War Dances to the Music of Hard Times: Sight & Sound.” British Film Institute. Accessed February 17, 2021. https://www2.bfi.org.uk/news-opinion/sight-sound-magazine/reviews-recommendations/cold-war-review-pawel-pawlikowski?fbclid=IwAR0NvpezQZA6Xt_cg60wRFFBZO6d9QCVGuoVii5ak7Ygl8dEimjANIJSFUM.


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