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«Ma Rainey: A Mãe do Blues» ou como a arte não nos salva, salvando.



Ma Rainey em 1917


É um lugar comum: a cultura é uma tábua de salvação e o confinamento veio demonstrar como dela somos ávidos dependentes. Fechados em casa o tempo passa-se entre um sem fim de plataformas streaming, cujos catálogos vemos engordar diariamente enquanto nós próprios nos esforçarmos por manter a linha. Há ofertas para todas as ocasiões e para todos os gostos. Para os mais variados níveis de tédio a querida internet nos oferece um ramalhete de possibilidades, desde o cinema de autor aos vídeos de gatinhos no Youtube e Instagram. Nada disto é novidade bem sei nem sequer uma inevitabilidade. Ainda podemos ler. Podemos ouvir música. Podemos comprar bilhetes para ver gravações de espetáculos online ou transmissões em direto. E dizem que a televisão ainda existe. Claro está que tudo isto se dá no caso de o leitor dispor de tempo livre, que aparentemente agora temos todos de sobra.

No início deste mês o expresso dava conta de que em cada 100 casas portuguesas, 22 tinham acesso a pelo menos um serviço de televisão por subscrição — acima da média da União Europeia, de 18 em cada 100. A liderar as subscrições está a plataforma Netflix que o ano passado teve uma receita de 5,3 mil milhões de euros só na europa, segundo a mesma fonte. Parece que de facto estamos a consumir mais «produtos culturais». O que, por sua vez, parece provar o poder e o papel que a cultura desempenha quotidianamente ou pelo menos a sua larga presença nas nossas vidas.

Voltemos à Netflix. Foi lá que encontrei numa madrugada sem sono, na categoria das obras recentemente adicionadas o filme Ma Rainey: a mãe do blues. Como se percebe a escolha foi puramente casual. Abri o filme porque tinha blues no título e carreguei no play porque tinha Viola Davis e Chadwick Boseman nos papeis principais. O filme não é uma obra prima mas foi uma agradável surpresa. Conta a história de Ma Rainey que é na verdade o nome artístico de Gertrude Rainey (1886 – 1939) uma das primeiras cantoras a gravar discos de blues no início do século XX, juntamente com Mamie Smith (1883-1946) e Bessie Smith (1894-1937). O filme não é, no entanto, sobre música nem sobre blues, é sim sobre a condição dos negros nos EUA, em especial na região norte depois das grandes vagas de migração do sul. A protagonista não deixa de ser uma cantora — uma mulher negra — num estúdio de gravação de homens brancos e um exemplo daquilo que eram no início do século XX os discos raciais e as artistas raciais. E desse ponto de vista o filme justificaria o meu interesse e a oportunidade de conhecer melhor uma realidade a que nunca prestara muita atenção. Parece mentira, mas nem há 100 anos a discográfica Okeh Records (actualmente parte da Sony Music Entertainment) cunhava o termo «race records» numa estratégia de marketing que pretendia promover entre os afro-americanos artistas como Mamie Smith. Esta designação que vigorou entre os anos 20-40 era aparentemente usada não só pelas discográficas, mas pelos jornais e pela própria comunidade em geral que usava o termo «race man» e «race woman» para se referir a personalidades que se destacavam na promoção da cultura afro-americana. Vivia-se o início de uma revolução na indústria musical promovida pelo desenvolvimento da tecnologia e pelo sistema comercial capitalista a que tudo se adapta e da qual o streaming é o mais recente capítulo.



O filme faz parte do projecto de Denzel Washington que pretende adaptar ao grande ecrã (a expressão ainda fará sentido?) as peças do dramaturgo August Wilson, iniciado em 2016 com o filme Vedações (no original Fences). A sua génese dramática é bem visível em várias partes do filme e será talvez essa a maior crítica que se pode fazer à adaptação do Ruben Santiago-Hudson responsável pelo guião e George C. Wolfe que assina a realização. A peça e consequentemente o filme passa-se durante um dia nos estúdios Paramount em Chicago. O filme acrescenta umas cenas em forma de prelúdio onde vemos Ma Rainey no seu habitat natural: o palco, entre o blues e o vaudeville, onde terá conquistado uma admiração do público graças à sua personalidade e força interpretativa que questionam diretamente a construção da identidade da mulher negra à época. Ma Rainey não encaixa numa história idealizada da ascensão das artistas negras, pelo menos não tão bem como Bessie Smith e será talvez por essa razão que o nome de Bessie nos soa mais familiar do que o de Rainey. Viola Davis dá bem conta dessa personalidade complexa, da vitalidade e determinação que se confundem com vulnerabilidade e uma consciência aguda das injustiças a que a sua cor de pele a submete.

Para que a história funcione August Wilson inventa a personagem de Levee Green um jovem trompetista com sonhos de se tornar ele próprio líder de uma banda interpretando as suas canções originais. Símbolo da ambição e de uma certa vontade de renovação do género musical Levee Green não é visto com bons olhos por Rainey que o considera uma ameaça — talvez mais pelo flirt que este faz à jovem amante da cantora (Sim, Rainey relaciona-se com mulheres!) do que pelo que representa musicalmente. Esta tensão entre Rainey e Levee é mais uma camada dos vários conflitos individuais de cada personagem, das suas condições sociais e do embate que se dá entre Rainey e o produtor e agente musical. Uma mulher num mundo de homens. Uma mulher negra num mundo de homens brancos.

A grande virtude do filme, além das interpretações sinceras e irrepreensíveis dos protagonistas, reside em duas opções do realizador. A primeira a de alterar a estação do ano em que se desenrola a acção. Na peça de August Wilson a história acontece no inverno, George Wolfe decidi filmá-la numa tarde quente de verão, conseguindo assim o retrato de uma Chicago hostil e opressiva só com o simples engenho técnico de recorrer a uma luz branca e um céu amarelo acinzentado. A ideia de que a luz pode oprimir é subtil e fez-me lembrar de uma frase de Madame Butterfly, a ópera de Puccini, que sempre achei curiosa. Quando descobre no terceiro ato que Pinkerton é casado com uma mulher Americana e que simplesmente voltou a Nagasaki para levar consigo o seu filho Butterfly pede que fechem as janelas depois de concordar entregar o filho, dizendo «Há demasiada luz lá fora, há demasiada Primavera.».

A segunda opção é a porta fechada na sala de ensaio. Levee tenta desde o primeiro momento abrir uma porta na sala de ensaio, procurando uma saída para o ambiente poeirento e conservador criado pelos seus companheiros que vêm a ambição do jovem como ingenuidade e têm uma posição menos idealística em relação à sua função enquanto músicos de uma banda de blues. A porta é também uma subtileza que desperta uma curiosidade crescente nos espectadores. Quando finalmente Levee consegue abrir a porta, já perto do fim, e vemos que ela leva a lada nenhum, um pequeno saguão apenas, percebemos que se trata de uma metáfora. Uma metáfora que dá conta do actual estado das questões raciais nos Estados Unidos da América. Se é verdade que há bastante tempo abrimos portas à discussão do racismo enquanto tema estrutural e fracturante nas sociedades contemporâneas é verdade também que o lugar em que nos encontramos não é muito mais animador que um pequeno saguão. A luz natural entra, mas há ainda um longo caminho até se poder viver numa sociedade verdadeiramente antirracista.

Levee tem um final trágico (que funcionará mais no teatro que no cinema). A arte não o salva. Ma Rainey sabe que não é respeitada e que o interesse da discográfica em si é puramente económico. A sua presença não é desejável apenas tolerada e não na medida do seu talento, mas só na medida do lucro que oferece. A arte não a salva da exploração e discriminação. A arte não salva ninguém, pelo menos em Ma Rainey: A mãe do Blues. Ter-me-á, contudo, salvo de uma noite de insónia. Terá recuperado a memória de uma artista esquecida. Terá conservado para a eternidade a última interpretação de Chadwick Boseman, que morreu precocemente no ano passado. Terá feito pelo menos isto, mas certamente algo mais. Terá certamente ficado muito por fazer, muito que depende também de cada um de nós: «a-one, a-two, a-you know what to do».


Ricardo da Rocha Pereira


p.s.: Sobre a música do filme reservo um comentário para mais tarde e justifico a ausência com as condições de visualização que como referi se deu noite dentro e portanto num volume quase inaudível para não incomodar ninguém, o que me impossibilitou a escuta atenta das músicas e banda sonora — imperdoável eu sei, mas quem diz a verdade não merece castigo.

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