André Malhado
Investigador do CESEM, Centro de Estudos em Sociologia e Estética Musical
A banda Daft Punk saiu de cena ao fim de 28 anos de carreira e as notícias desse acontecimento são muito claras. Um pouco por todo o ciberespaço aparecem textos que dão conta do seu impacto no mundo da música, do legado que deixaram e são feitas muitas retrospetivas do percurso artístico. Mas o que mais me espanta (ou não) é que as manchetes confluem em uma ideia particular: o adeus aos robôs. Para dar dois exemplos, no site da Blitz a notícia diz que “os Daft Punk nos mostraram que afinal os robôs dançam como nós”. Em outro caso, este n’Observador, escrevem que “afinal os robots sempre tiveram sentimentos”. Independentemente do que os conteúdos de cada uma destas e de outras notícias fornecem aos leitores, uma coisa é certa, é que os títulos começam logo pela associação dos músicos ao universo da cibernética.
O porquê deste fenómeno social foi algo que me questionei à medida que vagueei pela internet. Uma das hipóteses está ligada com a sua apresentação em público e, em especial, com o simbolismo que os músicos procuraram construir ao longo da sua carreira. Nessa linha, é-me impossível falar da minha experiência enquanto ouvinte sem remeter, complementar ou comparar com a minha relação na qualidade de espetador. Nunca gostei dos Daft Punk apenas (e o advérbio é importante) porque ouvia as suas músicas. Parte do significado que têm para mim, e seguramente para muitos outros ouvintes, é produzido pelo modo como os músicos se apresentam nos seus concertos, nos seus vídeos musicais, nos filmes ou em outros conteúdos audiovisuais.
O mesmo parece verificar-se nas notícias aquando do final da banda. No site Globo, falam da “identidade preservada” pelos músicos. Por um lado, existem os capacetes futuristas que criavam aquela mística de que sem caras humanas atuavam como máquinas. Por outro, são as “vozes robóticas” produzidas com diversos efeitos de pós-produção musical, desde a talk box ao vocoder. Sobre a conjugação destes dois aspetos, o artigo da Blitz vai ainda mais longe e coloca várias interrogações: “serão humanos? Aliens? Ciborgues?”. Todos sabemos (ou talvez não…) que são humanos e a questão não é essa. O permanece evidente é a sublimação dos músicos e a elevação ao estatuto de sobre-humanos: ou seja, nada que o Romantismo já não nos tivesse mostrado!
Os músicos de eletrónica foram consistentes na sua imagem de marca robótica e, talvez por isso, todos os restantes temas que exploraram foram obscurecidos. O que ficou foi o símbolo das máquinas que configuraram na sua arte. Sobre este ponto surgem as análises que dizem que eles foram capazes de adensar “a trama robótica”, que “foram os dois robôs mais celebrados de toda a cena eletrónica”, que tiveram uma “precisão robótica” e que, no fundo, os “punks robôs” e a “mecânica dos robôs transformou a música eletrônica”. Acho que já todos percebemos que era possível fazer um artigo inteiro só com excertos de citações que usassem metáforas robóticas para falar do repertório dos Daft Punk!
A notícia oficial do fim de carreira foi o vídeo “Daft Punk - Epilogue” que divulgaram no seu canal de YouTube. Apresenta-nos os dois membros a caminhar pelo deserto, um deles ativa um sistema de autodestruição no outro, e depois este explode. Se a vontade dos músicos era de “go out with a bang”, eles conseguiram (só que no vídeo é mais explícito). Para deixar claro, acho que todas estas notícias estão além de uma síndrome da hegemonia da imagem. Uma imagem vale mais do que mil palavras porque pode ser mais imediata, só que a sua relação com a música provoca uma experiência totalmente diferente. Os Daft Punk foram capazes de explorar socialmente um tipo de representação da máquina na música e o seu adeus nunca irá eliminar isso.
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