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Produção de vídeos musicais ou reprodução de realidades pandémicas?


Vídeos musicais capturam a realidade portuguesa. Este parece ser um dos objetivos de muitos artistas durante a pandemia de COVID-19. O vídeo musical tem sido uma arte que habitua os seus consumidores a estéticas inovadoras e diferentes formas de apresentar músicos através de espetáculos. Durante esta época pandémica, o uso de vídeos musicais não tem estado assente (somente) na necessidade de vender produtos, mas de manter os consumidores ligados aos músicos através de várias plataformas digitais.

Através desta prática musical, muitos artistas decidiram apresentar registos do seu quotidiano. Daqui resultaram fotografias e imagens em movimento que apreendem no tempo o isolamento, o distanciamento físico, a quarentenas e outras situações que, desde 2020, fazem parte do quotidiano de muitos portugueses. Veja-se, por exemplo, o vídeo musical TRANSTORNO de André Tentugal, Gisela João e Samuel Úria. Com filmagens da cidade do Porto durante o confinamento de abril de 2020, a sua paleta de cores a preto e branco e a sonoridade de fado expressam os “remendos da memória” que Gisela João nos canta. A ser verdade que o fado se associa à construção de uma identidade portuguesa, o que poderíamos dizer desta apresentação de ruas quase desertas, de uma prática de exercício físico solitária no terraço ou dos bandos de pássaros que substituem os grupos de pessoas em hora de ponta?

https://www.youtube.com/watch?v=Mp19lLwVNKE


No mesmo mês e manifestando uma ideia similar, o vídeo LUZ de Moullinex é gravado com um iPhone de dentro de um carro. Usando binóculos os produtores filmaram vários cidadãos em diversas situações na cidade de Lisboa. Tendo como foco as janelas e varandas, o vídeo apresenta cidadãos que cantam, dançam, tocam instrumentos, pintam, namoram, entre muitas outras atividades. Dada a natureza “real” do vídeo e a fraca qualidade da imagem, é difícil ignorar o aspeto de voyeur, a sensação de espionagem fruto do olhar misterioso que se constrói através das lentes de um binóculo. Será que estas pessoas sabem que o Big Brother as observa?

https://www.youtube.com/watch?v=AcCbhEnHUIo


Compreende-se o propósito destes vídeos. Existe um efeito de estranhamento porque observar as ruas das cidades de Lisboa e Porto mais despovoadas não é algo habitual. E o estranhamento é uma estratégia criativa muito característica da ficção científica. Não deixa de ser interessante pensar que enquanto estas ruas estão mais desertas porque um vírus circula de modo invisível, as pessoas encontram-se dentro de suas casas acedendo aos seus dispositivos tecnológicos que são, sem dúvida, uma extensão de si próprios. Mais do que extensão, são o que neste momento lhes permite estar em constante contato com o exterior, com outras pessoas e com o mundo. Muitas vezes ouvimos dizer que a ficção científica futurista antecipa a realidade. Até onde podemos ir com as comparações e atuais paralelos entre as realidades vividas hoje, em tempos de pandemia, e os mundos distópicos do amanhã?


Estando os portugueses e outros cidadãos um pouco por todo o mundo inseridos na representação que nos é dada a ver por parte destas obras artísticas, pergunto-me se existe algum desejo por parte das pessoas por contemplar estas paisagens quotidianas. Será que confrontar as audiências com um reflexo do seu próprio mundo, incidindo na tradição de um vídeo musical documental, constrói consumidores mais críticos ou resignados ao seu quotidiano? Cansados e frustrados devido à necessidade de isolamento físico, os nossos computadores, televisões, consolas de videojogos, telemóveis e outros dispositivos informáticos são um canal de escapismo para um outro mundo de sons e imagens a que temos acesso dentro das nossas casas. Quando a sociedade portuguesa enfrenta momentos de grande dificuldade, e estas propostas artísticas não imaginam outras formas de vida, o que estas podem acrescentar à crueldade do presente que todos nós já conhecemos e queremos ultrapassar? Talvez seja relevante pensar porque será que a produção de espetáculos em vídeos musicais foi substituída pela reprodução das realidades que, para muitos, é tão pouco espetacular.


André Malhado

Investigador CESEM NOVA/FCSH


Imagem de Paula Gomes Ribeiro

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