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Remédios, analgésicos e opioides: a leitura de <i> A Torção dos Sentidos </i> de João Pedro Cachopo


"O vírus não mudou a humanidade, Tão-pouco revelou a sua essência. Não derrubou o capitalismo. Não salvou o planeta. Já o modo como entendemos e nos situamos no mundo conheceu um revês como há muito não se via. A pandemia não mudou o que somos mas como somos. O modo como vivemos, pensamos, desejamos, imaginamos e agimos está a sofrer uma metamorfose. É no meio e diante esta metamorfose que importa tomar uma posição." (Cachopo 2020, 40)


É sabido que devemos ter em conta a pertinência que a leitura de um livro tem perante a nossa própria vida. Terá por isso sido ousado ler A Torção dos Sentidos – pandemia e remediação digital num período quase indeterminado de quarentena? Apelaria a uma distância emocional maior? Ainda que com estas questões, decidi suplantar a dor de revisitar a quarentena do passado na quarentena do presente. Um pequeno exercício contra a chantagem imposta pelo medo referida pelo autor - de que “em tempos de emergência ou de catástrofe – não há tempo para pensar” (Ibid., 24).


A Torção dos sentidos dirige-se ao leitor num tom sóbrio, mas não desprovido de humanidade. Em vez de uma linha de pensamento inflexível, o autor começa por identificar vários discursos acerca da pandemia, expondo as questões cruciais e as várias frentes de discussão. Coloca-nos entre os “apocalípticos e os remediados” – quem reconhece a situação como catástrofe, e quem se integra e procura novas oportunidades – como as duas posturas extremas perante a remediação digital. Ser uma ou outra coisa, formula uma discussão complexa, entre desistir e cair com ingenuidade nas várias amarras do capitalismo. Mas ser realista torna-se mais complexo do que ficar à margem, e não ceder à remediação torna-se um perigo perante as circunstâncias actuais, podendo levar “à autocondenação, à surdez e ao mutismo” (Ibid., 56). Apartando os extremos, numa reflexão entre optimismo e pessimismo, João Pedro Cachopo opõe-se, sobretudo, a uma ideia fatalista e determinista que afasta a hipótese de que as tecnologias possam ser um objecto de estudo pertinente, ao avaliarmos as transformações resultantes das medidas de resposta à pandemia.


Deste modo, o autor formula uma hipótese que reconhece alterações reflectidas em diversos modos de vida, pelo recurso à remediação digital, que altera o que percecionamos como próximo e distante. É por este motivo que o prólogo se intitula de “A pandemia não é o acontecimento” (Ibid., 9), pondo em evidência de que foram as medidas tomadas para conter o vírus - como o isolamento e o distanciamento social - que impactaram os sentidos com os quais percecionamos o que nos relaciona. Inevitavelmente, a remediação digital tornou-se uma análise necessária para este entendimento, por ter sido uma resposta, ou uma alternativa, à nova proximidade. Estes sentidos que sofreram a torção, esclarece o autor, não são referentes ao sistema sensorial, mas sim à “imaginação e percepção” (Ibid., 12) da distância de um determinado fenómeno. O amor, a viagem, o estudo a comunidade e a arte constituem a lista de sentidos e das suas possíveis significações seleccionadas neste texto para ilustrar este jogo de distâncias, e o modo como se articulam com a remediação digital.


A análise destas experiencias remediadas é, diria, um tema que transcende a pandemia e que se encontrava pendente de análise por fazer tão parte do presente, mas talvez tenha chegado o ponto sem retorno que nos impede de o evitar. É aqui que, na minha opinião, reside a maior pertinência deste livro, por transcender o assunto da pandemia, abordando a remediação digital em disciplinas tão terrenas como as que são expostas no capítulo que lhe dá título. Mais do que uma análise, uma reflexão ou um entendimento, este livro transborda de humanidade, numa conversa séria e clara desprovida de extremismos - embora reconhecendo-os - e sem as distrações da espiral da emoção, da qual o autor elegantemente conseguiu escapar, mesmo ao escrever dentro do acontecimento.



Cachopo, João Pedro. A Torção dos Sentidos - pandemia e remediação digital. Sistema Solar (Documenta), 2020. 





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